Entrevista: Cristina Machado lança livro com Vila Pouca de Aguiar como cenário

Natural de França, onde viveu até aos 15 anos, é com esta idade que a sua família ruma a Vila Pouca de Aguiar, mais concretamente para a aldeia de Fontes, na freguesia de Telões. Filha de pai transmontano e de mãe “das Beiras”, confessa que, inicialmente, foi “muito duro” pela disparidade de realidades por vir de um meio urbano para um meio rural, e pela sua língua-materna, que era o francês, apesar de conviver com o português.

Adaptação feita, com a conclusão do ensino secundário em Vila Real e posterior continuidade dos estudos em Coimbra, afirma que “é engraçado porque o meu percurso levou-me a sair daqui, ou seja, eu precisei de sair, para voltar mais pacificada”.

“Entretanto também vivi em muitos sítios, portanto, sou daqui, e também já fui de muitos sítios, e isso está sempre muito presente na minha constituição e na minha forma de encarar a vida”, explica Cristina Machado. “Eu sempre quis conhecer outras realidades, tive muitos anos a trabalhar em Moçambique, fui para Timor e foi muito importante esta fase porque me abriu as janelas, e também me deu a experiência de ser a minoria noutros contextos”. Revela que a amiga a quem dedicou o livro, Micá, dizia que se devia ir viver fora pelo menos dois anos porque nos ajuda “a perceber que a maneira como vemos o mundo é nossa, mas há tantas outras”.

É professora de Português e Francês, com formação inicial em Línguas e Literatura, e já esteve “no sistema das escolas em Portugal”, tendo também passado pelo ensino por Moçambique, Timor e Burquina Faso, e depois foi “voltando e saindo do ensino, porque quando tive filhos, acabei por me afastar”. Tem um casal, de 12 e 16 anos e, para os poder acompanhar mais de perto, já que o marido viaja muito em trabalho, optou por colaborar com várias empresas e dar aulas online de Francês e Português, um pouco por todo o mundo, porque “tem havido bastante procura”, principalmente em relação à Língua Portuguesa por parte de multinacionais. Também nesta área faz traduções, e conjuga ainda com uma outra vertente, com atendimentos em terapias energéticas e espirituais.

 

“Há muito mais que nos une do que aquilo que nos separa”

A autora conta que os cerca de 10 anos fora de Portugal lhe trouxeram uma bagagem de vida e que todas essas experiências a moldaram na pessoa que é hoje e que concluiu que “há muito mais que nos une do que aquilo que nos separa”. Acredita que está muito mais ciente do que a rodeia e que tem “mais vontade de aceitar também as diferenças porque, ao fim e ao cabo, por mais diferenças culturais que haja, aquilo que todos nós procuramos é a segurança, conforto no sentido de ter comida na mesa, podermos deitar os nossos filhos em segurança, podermos dar aquilo de que eles precisam, que é educação, saúde, comida, e isso todos nós queremos, tanto as pessoas em África ou na Ásia. Além de ver as diferenças, acho que temos que ver que são pessoas e todas elas são muito semelhantes naquilo que é essencial”.  

 

O processo criativo

Para Cristina Machado, escrever “dá imenso trabalho, leva-me imenso tempo e energia”, contudo, diz a autora, já tentou dedicar-se “completamente a outra coisa, mas já entendi que não dá, e volto sempre, portanto é algo de que gosto muito de fazer”. Relembra que as três obras prévias já publicadas, “Online” (2016), “Perpétua da Roda” (2018) e “Travessia” (2023), são autoedições pelo que toda a produção e logística inerentes ficam a cargo da autora.

A entrevistada conta que os seus primeiros passos na área da escrita foram na poesia e que, quando vivia em Moçambique, “trabalhava bastante e não tinha tanto tempo”, pelo que enveredou pelos contos, por terem uma constituição mais curta. Também os diários faziam parte do seu dia-a-dia, quando era mais nova, “por isso é muito intrínseco e não vale a pena eu afastar-me, porque volto sempre [à escrita]”.

 

A felicidade não tem história

Este título estava há algum tempo guardado e destinado a uma futura publicação. Cristina Machado não teve dúvidas quanto à adequação a esta história que nos apresenta, e dedica a obra à amiga Micá, já falecida, que também “inspirou o título”. Conheceram-se em Moçambique e ficaram sempre em contacto, “mas quando nos víamos, ou quando falávamos ao telefone, ela perguntava como é que eu estava e eu ficava sempre sem jeito, porque estava tudo bem, não tinha muita coisa para dizer, e ela dizia que a felicidade não tem história, é bom sinal”. Micá viveu 20 anos na Austrália e, quando vinha a Portugal, tinha uma amiga que lhe dizia essa mesma frase, que Micá passou a Cristina Machado, que acabou por a reter, sem conhecer a amiga de Micá, apenas sabe que se chamará Ana Paula.

“Eu dizia sempre à Micá que a frase dava ótimo título para um livro porque, de facto passamos a vida a queixar-nos de que nada acontece, e não nos apercebemos de que o facto de não acontecer nada, muitas vezes é também um bom sinal, porque estamos todos com saúde, que está tudo bem, não nos falta nada, não temos falta de comida, de conforto, e está tudo a correr bem”. A autora refere ainda que “os grandes transtornos da vida são ricos, mas também são, muitas vezes, fases de grande mutação interna, e achei que [o título] se conjugou logo para esta história”.

A escritora explica que o livro “A felicidade não tem história” é passado em Vila Pouca de Aguiar e que, assim que imaginou a personagem principal do livro, “ela era daqui”, sendo que o primeiro capítulo tem o nome da tradicional Feira das Cebolas aguiarense. Começou a trabalhar na história em 2019 e, diz, “muitas vezes, as histórias saem numa primeira escrita a jato e depois vai ficando e vou fazendo outras coisas e, de facto, esta história passou por muitas mutações” uma vez que “no início, a pessoa que escrevia só se depara com alguém que lhe causa uns efeitos que ele acha muito estranhos e, na primeira versão da história, ela não se envolve com essa pessoa. E depois achei que era muito mais interessante ela envolver-se e fui mudando e as duas histórias em paralelo que também foram afinando, foi uma maturação”.

Cristina Machado levanta o véu sobre o livro. “É uma história a duas vozes, em que temos a escritora que está a escrever uma história de amor, e que vê a sua vida pessoal completamente perturbada por uma paixão que surge. São estas duas linhas que vão seguindo em paralelo e, se que ‘a felicidade não tem história’, não há de ser uma história de amor muito feliz, já que deu uma história”.

 

“Só sabemos o que é felicidade depois de saber o que é infelicidade”

No livro, a escritora integra o amor e “as suas dores”, conforme refere na sua descrição. Aprofundando este tema, Cristina Machado revela que “as dores têm, em si, a possibilidade do alívio da dor, a possibilidade da cura. Só que o que acontece é que qualquer ser humano, perante alguma coisa que causa desconforto, vai ter como primeiro impulso fugir. Das duas uma, ou passo a vida a fugir ou, a determinada altura, respiro fundo e começo a olhar e a questionar o que está aí, e porque é que é desconfortável, e este é o primeiro passo para sair deste ciclo de dor”.

Cristina Machado adianta que “é um livro que tem muitas emoções e muitos mal-entendidos à volta do amor, porque muitas vezes o apego, a posse, o ciúme, pode ser muita coisa, mas não é amor”. Ainda sobre este tema, na sua visão, a autora diz que “as pessoas não sabem viver com as suas emoções porque tentam pô-las debaixo do tapete. Só que não vão desaparecer porque nós queremos, portanto, o melhor é conseguirmos olhar para elas e tentar perceber o que é que aconteceu e porquê”. Para finalizar o tema, conclui que “quando as emoções não são olhadas, acolhidas, entendidas, elaboradas, levam-nos a reagir em vez de agir”.

 

“Tenho um carinho muito especial por este livro”

Esta sua quarta obra publicada, “A felicidade não tem história”, teve algumas diferenças em relação às anteriores “que tiveram um trabalho muito individual”. No que diz respeito à sua nova produção, onde a autora fala num “trabalho em equipa”, para este projeto solicitou o serviço de uma revisora e de uma designer para entregar um “produto final muito mais acabado”. Também a capa foi “feita por uma amiga ilustradora” pelo que “há uma série de pequenos pormenores que eu acredito que tornem o produto final muito especial e com mais qualidade”.

A autora já tem apresentado os seus livros sempre que é solicitada e está aberta a novos convites tanto para esta obra, como para as anteriores.

O lançamento do livro de Cristina Machado será no dia 6 de dezembro, na Biblioteca Municipal de Vila Pouca de Aguiar, às 15h30.

 

Perpétua da Roda – A vida retratada de que não se fala

“Perpétua da Roda”, a segunda obra da autora publicada em 2018, foi “inspirada pela minha bisavó, cuja história eu desconhecia totalmente até chegar aos quarenta e muitos anos”. Foi através de uma conversa com uma prima, acerca da bisavó de ambas, que a curiosidade em saber mais se propagou a Cristina Machado que começou “a perguntar e fiquei a saber que a minha bisavó tinha sido exposta na Roda de Vila Real” e mais tarde criada por uma ama de leite em Ribeira de Pena, de onde saiu para trabalhar em Fontes. A “roda” era um mecanismo giratório onde as famílias deixavam as crianças, assegurando o anonimato da criança e de quem a entregava, e que teve um papel social no acolhimento de crianças abandonadas. Decidiu então “pegar nesta história” onde vai “percorrendo três gerações” e afirma ter escrito esta obra “não tanto pela minha bisavó, mas porque é a história de muitos milhões de pessoas. É o retrato do português rural, que eu tenho a impressão que não há muitos, sobre as camadas mais pobres”. Considera a autora que é uma “espécie de tributo a todos aqueles que foram expostos e também a essas vidas duras que eram as vidas no meio rural durante o Estado Novo”.

 

 

Ângela Vermelho

Foto: Cristina Machado e DR